domingo, outubro 31, 2004

Vemos mais no escuro do que podemos imaginar.


Perto das três da manhã escancarou seus olhos como se lhe ocorresse algum compromisso efetivamente necessário. Nada, um susto apenas. Longe de ter de volta o prazer de aproximar-se do travesseiro firmou seus pés no chão, esfregou o rosto. Um carro passou na rua e a luz correu a parede do quarto através das frestas da persiana. O ofuscar durou poucos segundos e pôde forçar-se em ver seus pés no tapete persa. Um volume estranho deixou-se revelar por sob este. Com a força que contém os semi-acordados, enrolou-o e deparou-se com o que pareceu ser um fechadura e uma passagem. Ambos de metal brilhante, um aço qualquer.
Graças à sua origem, pode passar pelo estreito buraco que se abriu no chão. O lugar parecia ter vida e sabia bem quando o turista viria visitá-lo, acenderam-se luzes suficeentes e pôs-se a caminhar por entre os corredores o tal turista. Dentre todas as portas possíveis, a intuição pôde guiá-lo a tocar apenas uma. Um pouco determinístico dizer que era ali que queria encontrar-se: uma estante de livros um bocado estranhos, mas que pareciam trazer a tão necessária reflexão.
A parede rústica abrigava lanternas a querosene e com uma destas aproximou-se do tal acervo.

"Ensaio sobre a paixão humana"...deixe-me ver...
"O bem-estar do servo para com a servidão"...talvez...
"O querer da paz em frente à loucura".
"Controle x razão".
"O sexo e as formas de amar".
"Preso em cela sem grades ou muros".
"Filosofia de tratamento dos mortos"..
"Psiquiatria voltado a racionais"..
"A estrada como forma de cura"..
"(Escreva aqui o título)"...

E nesse houve grande surpresa por parecer não definido, assim como todo o estado do sonâmbulo turista. O ambiente soava propício para tais reflexões, seria pouco díficil ficar horas e horas a fio sobre esse livro tão intrigante.
As primeiras páginas pareciam como um grande relato suicida, porém continham magníficas citações de grandes filósofos ou escritores, um tom levemente sarcástico que abandonava a hipótese inicial de deixar a vida. Essa atmosfera fúnebre que logo se fora, deu lugar a um entusiasmo pouco visto longe de crianças que acabam de descobrir o quão grande é o mundo. Como darwin fez ao descobrir a possibilidade de descobrir e um misto de saber que nada se sabe, lutou contra os olhos cansados e, sentando-se numa poltrona luxuosa, pois a decifrar os sentimentos do jovem escritor.
Parecia um grande teórico querendo deixar a ineficaz suposição para dar lugar à imensidão do experimentar com próprios sentidos.
Contou, em determinada situação, que poderia ver mais em lugares escuros do que poderia em lugares iluminados. A luz, segundo ele, limitava o nosso ver. Em contraponto, podíamos ver o que quiséssemos no breu de nosso ver. Ainda mais, na falta do que poderia se dizer da luz, tinha-se o infinito imaginar do escuro: a vontade de ver [e conseguir] o que tão escasso nos parece nos dias de hoje...
O livro caiu de suas mãos. E se uma vez esteve fugidio, não deveria pois forçar-se a tê-lo novamente como compania. Teve respeito e deixou-o como quisesse, a sós. Escreveu, pois, "A solidão necessária", na capa do livro.

Servo e servidão, escravo de sua própria necessidade de não fazer mal algum ao próximo. Na escravidão de ter a cousa amada como incontestável razão de vida, mesmo com a impossibilidade romãntica de ter em seus braços tamanho elixir de vida. Desses emplastros românticos fez sua vida, e não seria de uma lembrança que hesitaria o viver inócuo, demasiado complicado, das últimas semanas. O livro pediu, e o leitor abaixou os olhos e, com carinho, o pôs próximo ao outro que já úmido estava devido à frieza do chão.

Psiquiatria voltada aos racionais... o abrir do livro fez com que seus corpo fosse levado velozmente no caminho oposto ao que tinha inicialmente feito. Um enjôo fez-se perceber, viu-se novamente na cama deitado, num novo abrir de olhos.
Agora já era dia. O tapete escondeu a portinhola de metal.


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