segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Ao telefone

Chutava folhas imaginárias. Era possível vê-la morder levemente a ponta dos dedos ao aproximá-los dos lábios ansiosos e sorridentes. Dava poucos passos e logo volta-e-meia. Sorria com os olhos também.
Estava ao telefone.

O mundo não existia. Uma horda de cavalheiros passava desajeitada, levantando poeira e jogando seus cabelos ao vento. Ficava mais bela, é verdade. Sã, intocada por qualquer coisa mundana, observava além do que se via: era mais.

Se houvesse janela, saberia que seria admirada pelos que passassem trôpegos na calçada do outro lado da rua. Esta era pouco irregular, mas a visão os desnorteariam. Engraçado seria observá-los em disfarce, ainda que desnecessariamente.

Estava próxima e distante. Apesar de a centímetros, o que havia estava somente entre o telefone e o outro protagonista. No íntimo dos envolvidos na cena, externamente, restava um certo ciúmes e algumas lembranças.

O que passa aos olhos é sempre um filme já visto, independente dos personagens. Há sempre um dom de curvar as novas situações ao que interessa no momento. Moldando os acontecimentos para encaixar o que pouco se pôde dizer na época, o que se tinha vergonha, mágoa e era tão irreal.


domingo, fevereiro 21, 2010

Cinzas

Esbarrou em algo logo após abrir a porta. Nada teria mudado, mesmo após o longo tempo fora. Correu a mão direita pela parede áspera e deslocou o interruptor, acendendo a luz. Sim, era o mesmo lugar.

Havia um cheiro esquisito. Doce, cítrico, abafado e úmido... velho, fechado, bebida alcoólica. A última foi uma observação ao grande número de tipos e copos de bebida espalhados por todo lugar.

Aquela bagunça foi uma festa. Provavelmente um desbunde excessivo, anterior a uma privação que nunca ocorreria de verdade. A festa pela festa. Por que não o melhor de dois mundos? Fartar-se antes da quaresma sem ter de privar-se dos excessos, estes hoje característicos pela duração e não pelo conteúdo.

Estava encolhida no sofá. Fantasiada com tons avermelhados e alguns detalhes brilhantes, dourados. O corte não combinava com a delicadeza dos panos, eram agressivos e traziam o desejo de ser, ao menos por poucos dias, algo diferente do usual. O mesmo que aqueles vestidos de aquelas.

O que marcou no conjunto foram os olhos maquiados borrados em forma de lágrimas bem escorridas. Seriam parte da fantasia desejada ou resquício da transformação nunca atingida?

Eram cinzas.


sábado, fevereiro 20, 2010

Tempo

A modernidade tirou férias. Apagaram-se as luzes e um bom trecho da cidade ficou a procurar lanternas e velas. Fiz o mesmo. Muito fraca era a que achei e precisei encontrar algo para acender clássicas velas. A atmosfera ficaria romântica...
Revirei cômodas e gavetas até encontrar um isqueiro americano que, com um pouco de esforço, jogou centelhas numa boca do fogão e então fogo à parafina.
O candelabro bruxuleou sobre a empoeirada máquina de escrever. Os [nem tão] velhos tempos vieram aos olhos e algo haveria de ser escrito.


domingo, fevereiro 07, 2010

Dos Potes de Sorvete

Quando era pequeno, mal alcançava o puxador da porta do congelador. Segurava pela lateral mesmo, amassando a borracha isolante, enfincando os dedos, pendendo para trás e se exaurindo. Sempre com sucesso.

Esticava o pescoço e achava entre uma das divisórias horizontais aquela que teria o pote de sorvete. Não era difícil de achar, pois sempre jazia solitário. Outros como ele sempre estariam lá, guardando coisas que não eram sorvete. Em resumo, pote solitário era pote de sorvete.
Outro esforço enorme era abrir a tampa desse pote, sempre auxiliada por uma colher qualquer. Havia sempre o de morango, o branco e o chocolate. Sabia que o primeiro era dele e podia fazer o que bem quisesse. Era o seu favorito. Lembrava do verão e do sorvete dessa forma, o assalto ao congelador, caminhar na ponta dos pés enquanto vigiava rapidamente ambos os lados à procura de um visitante indesejado com perguntas impróprias.

Os tempos mudaram. O pote de sorvete não era mais solitário. Estava em companhia de pelos menos outros dois. Que continham cores outras que não eram mais de morango. Ainda que o favorito estivesse lá, fechava e abria tal porta inúmeras vezes achando que saberia o que escolher no momento em que visse. Não adiantava. Pouco tempo depois perdia a vontade. E fechava a porta desanimado.

Eram verdes, branco com pontos marrons, amarelos, laranjas até azuis! Cores, cores demais, sempre diferentes. Muitas cores, muitos sabores.


sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Pub Talk

He sat right next to me. Seemed to be pissed off and all he wanted was a strong drink. In a twinkle the barman served a long and no-rocks-scotch.
Usually barmen ask ordinary things just to assure that the client is not a maniac or dangerous for other customers, this is important for the business. But this guy started slowly and firmly telling latest events, showing no harm intention. Hard to understand the words at the very first moment, but after few minutes I could comprehend quite something.

"It supposed to be simple." Said the man.

The barman assented.

"We've talked and was agreed that each one of us would live according to a whole new life. The commitment was mutual and there would be huge efforts to assure its fulfilment."

The barman knew that one of the most important lessons learned as working in a Pub is to listen more than talk. As a shrinker, they were there to hear people complaining not to debate democratically. Drinking, paying and leaving. The difference is that alcohol takes play as the shrinker's advices.

"We were helping each other. But it became impossible since no achievements were really happening. We got stuck and hope was gone. Decisions had to made...then, no more of our personal borders should be crossed."

The conversation faded out and appeared to be ended. But he continued.

"I was rude but could be understood and forgiven. Why now I can't just forget, or forgive, what ever, everything and move on? I mean, if is there a reason for this but the fortune, I really would like to know.

"Your face shows me that you've seen something like that. It's a test, isn't it?

The barman smiled acquiescing with confidence, since he knew the only role he was there to play was "the listener who guides confuse man's thoughts to a calm conclusion, in an alcohol manner" and it was done working perfectly. Experience does matter.

By the way, he helped me before.


Contraponto

Possuía outros interesses. Paixões que o hipnotizavam. E virava a cabeça para seguir com os olhos.
O pescoço oferecido era presenteado com beijos, carícias e o que mais podia publicamente. Não repercutia. Aqueles beijos, quase puxões, visando um pouco mais de atenção, eram incrivelmente em vão.

Não importava o que ela fazia, olhava para outra coisa. Um outro mundo. Estava em sintonia com o que quer que fosse, uma ligação transcendental com o que via. Decisões racionais ou impulsos não têm a mesma ordem de grandeza e sequer fazem cócegas ao que fora nascido para admirar. Evite interrupções, pois já é sabido que o estado de ambos é passageiro.

Seja na admiração, seja na tentativa.