domingo, abril 12, 2009

Chocolate

O esquecer do desprazer contínuo, numa dose de infantil ignorância, um pedaço da cegueira que tanto é precisa.
U-hum.
Concorde com o que quiserem, preocupa menos o que quer que se diga do que o próximo aroma que esta mordida raivosa pode propiciar.
Entorpeça as verdades e a pouca vontade de se acreditar no que atrapalha.
Ah...
Cegue, surde, mude...
Mude.


segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Da Independência

Atravessa freis, doutores, padres e muita gente de nomes conhecidos até chegar a tal independência.
Com direito prendemos nós mesmos aos nossos olhos e à toda certeza de que as coisas acabarão bem.
O mundo é maior do que nós e tudo o que há de bom está mais distante que o braço esticado pode alcançar. Constatações à parte, temos pouco direito sobre a nossa esfera de ação.

A trincheira continua sem saber por está em fogo cruzado e qual partido tomar.
Na dúvida, descansa.


quinta-feira, dezembro 25, 2008

Pseudo

Não importa a época, o ato de perdoar continua sendo egoísta.
Pois o livrar-se de algo é necessário para aliviar o peso das costas e permitir o recomeço anual. O principal é abster-se do julgamento dos fatos já esquecidos, ainda que se mantenha o pé atrás, como que por reflexo condicionado.

O egoísmo é pleno posto que o arrependimento não é esquecido e a indisposição permanece para aquele que executou os fatídicos. O perdoante troca a roupa suja, e sorri de cara ao vento, enquanto que a angústia dos ecos dos erros atordoa, ou deveria.

Reconciliação é o bom-dia do fim de ano.


terça-feira, novembro 25, 2008

Resumo da Ópera

O menino viu o que não devia, pôs as mãos no rosto e não conseguiu gritar. Correu de sua casa, o mais rápido que pôde, pulou o muro e continuou em disparada.

Somente parou por causa de um tropicão. O sangue queimou o rosto e percebeu que tudo era real. Entorpecido, desmaiou.

De desespero, novamente, quis gritar, mas viu que algo o calava e percebeu que ninguém o ouvia ou ouviria, decidiu não proferir palavra sequer.

Tempos mais tarde descobriu que havia pessoas próximas às quais poderia falar, mas elas ainda sim, não o entendiam.

Decidiu fugir, mas desta vez, de si mesmo, já que quem era errado naquele mundo, era ele próprio. Sem se despedir.


quinta-feira, novembro 06, 2008

Do Sentir

Recorrência é frustrante. Pois sempre se permite uma nova interpretação da inútil felicidade, enquanto o que poderia gerar aprendizado cria a tortura. Repetida, incessante, sábia até. Sentir a mesma desgraça duas vezes quase invalida uma pessoa.

O que pode haver de errado? O eufemismo "característica" muda bastante o teor. A importância de fazê-lo é o de tentar focar no aspecto prático e solúvel. Se houvesse! Pois a solução sempre está na nossa frente e nunca conseguimos acreditar nela, e resolver, também, tira todo o romantismo da cena. Enxergamos mais facilmente de longe, ou para longe. O que seria se tivéssemos visão plena?

Ser livre deixa possibilidade do não sentir-se. Afinal, as sensações são a visão da realidade que adotamos, inconscientemente ou não, para nós mesmos. O que desejamos realmente, sempre, é sentir algo que consigamos vivenciar e nos enganarmos sem chance de descobrir a verdade. Posto que não há tal possibilidade, jamais nos sentiremos enganados.
Sentir é chave para o bem-estar.

Sinto-me péssimo, eu diria.


domingo, outubro 26, 2008

Das Folhas

Que secam e caem no outono. Na verdade, caem flores também, nem tão secas. Aliás, pouco secas, no começo da primavera.

Talvez seja uma questão de vento. Afinal, se já esgotaram as possibilidades do pleno bem-estar, é hora de partir. Bom, por falta de pernas, é necessário um pouco mais do que vontade para cortar o cordão umbilical.

Mas nem tudo acaba dessa forma. Pois nem tudo que rompe o tal elo pretende uma queda curta de aventuras e a morte rápida. Há sementes. Jamais produziriam algo se continuassem juntas à origem. Definitivamente, existe hora que se deve partir.

Se muita força for necessária, há chuvas de verão, ventos de fevereiro e as desejadas águas de março. Certamente as levarão para bem longe.
Que assim seja.


segunda-feira, outubro 20, 2008

Um Pouco de Poder

Nos dá a sensação superlativa de controle sobre tudo. O instante é sempre ínfimo e esse prazer, estupidamente infinito.

O que faz as pessoas sorrirem é a recordação desse espaço de tempo, ou seja, a alteração dos pesos temporais neutros, pelo desbalanceamento favorável à situação. Momentos depois, já nem importa mais o que fora preciso fazer, fica apenas o positivo efeito.

Enganar-se é prazeroso. Duplamente. Goza da irrealidade criada e depois de um tempo, o martírio por ela causada. Mas nesse, o tempo pára. E não se move até que mingüe toda a força vital, pelas veias, pelo peito, pelos ares.

Não existe prazer maior que o da dor, pois não existe sensação-fato senão essa. Cala e cega e amarra. Você perde o controle e assim está livre.


sexta-feira, outubro 03, 2008

X

Puseram-no algemas. A grotesca argola não combinava com os braços finos. Uma só conseguiria cobrir ambos, com toda certeza.
Ficara olhando sem muito peso para a situação. A indiferença acelerou o comentário:

- Pode ficar tranquilo, nós sabemos que incomoda. Mas jajá tiraremos e você ficará mais seguro.

Concordou em silêncio, afinal era lógico.

Depois de algumas burocracias e estava, enfim, sem aquelas algemas. Sentia-se livre.
O que dista dos olhos não oprime.

Foi assim que foi parar na prisão.


segunda-feira, setembro 29, 2008

Sisudez

Antirrealista. Incoerência da dificuldade de ponderar aos culpados a culpa natural e silenciosa. Se o próprio reclama que desconfia da razão, deveria se calar e aproveitar o prazer da culpa. Pois a incerteza tempera irracionalmente a intensidade tendenciosa da dúvida. Materializar, ao menos. Senão, o oposto é mínimo.

A certeza diminuiria a imensidão de possibilidades e o reduziria aos ocorridos.
A surra desejada, ao menos moralmente, não funciona para esse tipo. O que vale é a criação de um teatro onde a personagem sente durante o espetáculo. Nos camarins, ri do pouco caso da tristeza falsa e faz pouco da maquiagem barata. Nem se olha no espelho.

Que olhos veem? O turbilhão continua a enjoar os olhos que ainda veem. Por quanto tempo mais será preciso?


segunda-feira, setembro 22, 2008

Uma questão de Olhos

Os olhos que vêem a felicidade parcial sufocam a mísera imparcialidade desejada do próximo. E cega e destrói qualquer guarda já baixa pela situação indefesa.

A guerra silenciosa prosseguiu tempo demais. O suficiente para desistir do combate. O oponente lutou até o cessar-fogo da derrota anunciada. O único intuito era mostrar quem ali mandava.

As trincheiras continuaram sorrindo em meio ao caos. Pois não conseguiam enxergar o que ocorria, seus olhos não eram obtusos como se demandava. Mas sorriam, pois os rifles olhares soltavam pólvora e para alguns olhos eram fogos de artifício.

Eram belos, lúdicos, fantásticos...

Prefiria a cegueira dos olhos fechados, certamente.


quinta-feira, setembro 11, 2008

A parte

A qual parte de qual todo deveria pertencer parte ou todo de mim? Pois sem evento trágico, nem assentamento de terras, dilúvios, chacoalhões e pés, porque haveria de sensibilizar-se perante o mesmo dia-a-dia pouco mudado.
Porque faz sentido.

Faz sentido dormir no fim do dia e acordar cedo. Mas os ébrios dormem pouco, dormem enquanto acordados e enganam bem os observadores.
Mas eles são felizes.

Não sinto calor com essa roupa, nem frio. Adapto-me bem.
Do que estava falando mesmo? Bom, ninguém sabe onde se pertence, mesmo.


quinta-feira, agosto 28, 2008

Fobia

De tempo. Em tempo. O relógio e o sol são inimigos do prazer de tudo que é irreal.
Só hoje, já mentalizei bombas desviadas do parlamento ao Big Ben. Explosões de badaladas anunciavam o fim do controle.
Fugacidade era sensação sem medida. Anoitecer e dormir era desculpa para quem tinha motivo para voltar.
O romantismo acabou. Somos tolos por permanecer tempo demais em uma coisa só. Compreensível é o troco, a reciprocidade rídicula que justifica o desprazer de ir embora.

Enquanto as pessoas se vão, pareço mais contente.
Todas elas não suportam tão bem o trabalho quanto a vida.

Nem isso aqui é real mesmo. A propósito, que diferença isso faz, agora?


segunda-feira, agosto 18, 2008

Nasta

Santidade é criação. União de diversos atributos, fim a caracterizar algo que soa irreal. E o prazer da criação e de profetizar feitos e características é impar! Não deve interromper um fiel em meio à descrição e paixão. Não se pode quebrar a lâmpada das idéias, ou cortar a voz em meio ao grito tímido, soturno, novato.

A uma voz que pouco fala, resta, assim, mais silêncio e grande chance de resguardo. Ressalvas aos que são impenetráveis na certeza de ser, ficam os cantos ocupados, os tetos vigiados e o chão frio e duro.

Como se deve ser. Sempre.


domingo, agosto 10, 2008

Shhhh!!!

As bocas se costuraram. Indolor. Agradecia os ouvidos atentos que não queriam ser. Quando todo parecer de risada é insólito, o próprio rir é o envenenar lento dos fatos improváveis. Vividos por duas fontes, há sempre discordância. Quem vê corretamente, se há euforia das realidades distintas?

Eufemismos são suavizações da realidade, tiram o peso mas não a modificam. Se existem duas ou mais formas de ver o fato real, existe um sentido único de cada palavra. Muda, de certo, com o tempo - ou não. As letras que foram escritas, mesmo que negue o autor o significado próprio, não conseguem fugir do que se pensava. E não engana.

Contempla, pois, o silêncio e os olhos fechados. Repousa a mão sobre o colo e pensa. Não existe nada do que foi visto e não torna o martírio próprio em festa e poesia. Pois não é, apesar da euforia.


terça-feira, agosto 05, 2008

Naquela tarde

Havia fumaça sobre as xícaras. Dançavam no ritmo em que as palavras fluíam, naturalmente. Meio para o fim da tarde, com as cores mais avermelhadas intrínsecas e o verde tão característico do sudoeste do estado. Embora parecesse muito tempo, os líquidos não se esfriavam. Era raro momento em que a sensação estava de braços dados com o tempo, repousando mãos uma sobre a outra, romanticamente.

Longe das forças ocultas que nos barram o tórax, estapeam a fronte e apertam o pescoço. As xícaras eram intermináveis. Brincavam entre si a culpa e a angústia, em situação cômica, pois riam e não se levavam a sério. Pois, de fato, não eram mesmo. Sentimentos existem em caixas e se ocupam quando não utilizados.

E fechara o livro.


domingo, agosto 03, 2008

Da Inexistência

A esperança é felicidade. Não refute. Ainda que seja a esperança haver felicidade, ainda sim se é feliz.

O todo sem esperança é só angústia e tudo o que há de previsível. O que não existe pode ser esperado e nisso deve crer o homem e a mulher. Que haverá salvador vindo do inexistente e que, indubitavelmente, nos tirará do martírio de enojar-se de suas próprias projeções inferiores. Ainda que seja passado, a imagem de um futuro impróprio é dilacerante. É a certeza de que existe atalho retrógrado e que sempre podemos cair a dois ou três patamares.

É esquecer-se do 'por onde'. Do 'porquê' e do 'como'. Que existem exclamações, vírgulas e pontos! Ah, que, mesmo sem os acentos, existe uma regra invisível de proferir todos os acontecimentos desigualmente. Compreensível por todos, tudo o que mais interessa nos dias de hoje.

O tempo fecha e pouco se vê. É melhor fechar os olhos e fingir que nada vê, do que tentar convencê-los de que tropeçarão... afinal, eles vêem...
Hmmm... Eu não...

(E virou a cabeça de lado, preferindo ouvir. A imaginação é mais bem alimentada assim, pois - pensou)

E, nisso tudo, o que falta? O que falta para ficar em paz, comigo mesmo e com Deus? É possível, um dia?! Rá... esperança...


a-erre

1- Desculpe, com licença.
Desculpe,.. Desculpe... com licença? Pardon monsieur
Com licença, desculpe.. obrigado.
Merci.

Desculpe. Poderia...? Obrigado.

2- De nada, senhor.

1- Ar fresco. Aquela gente sufoca e ensurdece. Paz. Irreal, diria.


Do Imprevisto

É abominável a transição de "Im-" para 'Previsto'.

Fato é: nunca há.

Não é difícil perceber na brisa, na maré dos ocorridos e que, na leviandade do caráter, pouco importa o individualismo dos casais. E que se tudo foge à racionalidade, sempre há antiga fórmula para apaziguar ânimos.

Supresas têm de ser boas, ora! E o julgo clássico diverge, pois pouco interessa saber se algo havia sido planejado. Se o local dos imprevistos havia sido definido.
Pois sempre há margem para imprevistos... Desde que eles o sejam, do começo ao fim.

Não por falta de informação...

Mas era previsível, certamente. E não imprevisto.

E agora, quem tirará as tulipas do freezer?


domingo, julho 20, 2008

Tabacaria, nada mais.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928


domingo, julho 13, 2008

Valsa das Abóboras

Em baile de gala da corte, inúmeras almejam a posição de princesa. Na verdade, quem não almeja, torce e tem ciúmes, já que não pode candidatar-se à tal posição.

Quem o príncipe escolherá? Não é uma questão do que ele quer, mas sim quem ele vai escolher. Ninguém se pergunta se o príncipe de fato goza de sua posição, deseja com muito afinco ou apenas que era hora. Isto é, as obrigações de sua posição sobrepujam sua individualidade.

De certa forma é até surpreendente o poder de escolha baseado na ausência de critérios. Como deixar tal importante decisão em mãos de quem faz apenas testes!

E, enquanto se é príncipe, não se pode fazer leis. Demora até virar um rei caudilho.
Antes disso ocorrer, prefere observar os astros e os fenômenos.
E só.